sexta-feira, 23 de maio de 2014

BRASIL E CABO VERDE – UMA PONTE DE AFETOS

Ainda que nas antípodas um do outro em termos físicos, económicos, de recursos naturais, importância política no concerto das Nações e em muitas e variadas vertentes, é espantoso o leque de afinidades e semelhanças entre o Brasil e Cabo Verde bem como as manifestações de afeto que dum e doutro lado do mar estenderam pontes que prevalecem cada vez mais fortes e promissoras, através dos tempos até aos dias de hoje, em que a cooperação, nomeadamente com o Estado do Ceará, vive um momento muito significativo com um sem número de programas em desenvolvimento e centenas senão milhares de estudantes cabo-verdianos frequentando cursos superiores, médios e profissionais em Escolas e Universidades espalhadas pelo Brasil inteiro.

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS
Foi no ano de 1500 que o Almirante português Pedro Álvares Cabral, viajando para a Índia teve de repente a ideia de se desviar para Ocidente e em tão feliz momento o fez que acabou por descobrir o Brasil no dia 22 de Abril. Deu-lhe então o nome de Vera Cruz, logo substituído por Santa Cruz e mais tarde Brasil. Ainda que várias outras nações andassem rondando pela zona o certo é que Pedro Álvares Cabral tomou posse formal da terra em nome do seu Rei D. Manuel I de Portugal. Mas só em 1531 é que seria tentada a primeira experiência colonizadora do novo domínio tendo Portugal enviado para tal uma esquadra e 300 colonos liderados por Martim Afonso de Sousa que fundou S. Vicente e mais para o interior Paratininga, atual S. Paulo.
40 anos antes (1460) alguns navegadores da Casa do Infante tinham achado as Ilhas de Cabo Verde. Há controvérsias quanto à identificação segura desses homens: fala-se em Luís de Cadamosto, Gonçalves Dias, Diogo Gomes, António da Noli, sendo este último o que reúne maior consenso como o achador da Ilha de Santiago e das restantes ilhas do Arquipélago de Cabo Verde. Desertas, pobres de recursos naturais, ninguém suspeitaria então dos fortes laços que as ligariam mais tarde ao Brasil.
Segundo o Historiador cabo-verdiano António Leão Correia e Silva* no seu livro Combates pela História, “as relações entre Brasil e Cabo Verde perdem-se no tempo” pois a colonização do primeiro a seguir a 1500 foi feita a partir de Cabo Verde uma vez que o Arquipélago, transformado em interposto do comércio escravo e ao mesmo tempo laboratório de pesquisas e experimentações de natureza vária, iria fornecer ao Brasil a mão de obra necessária à exploração dos seus vastos recursos naturais. Além de homens Cabo Verde forneceria ao Brasil animais e plantas como se verifica por registo do Historiador atrás referido citando o Senhor de Engenho Gabriel Soares de Souza que teria deixado documento escrito atestando que os primeiros inhames, as primeiras cabras e vacas que chegaram à Baía foram da ilha de Cabo Verde (designação antiga para referir a ilha de Santiago).
Correia e Silva na mesma obra ainda acrescenta “estilos de vida e modos de organização da sociedade foram igualmente transplantados das ilhas onde, aliás, se construiu pela primeira vez uma sociedade de convívio prolongado entre negros e brancos”.
Segundo outro Historiador cabo-verdiano, Daniel Pereira**, “o Navegador António da Noli foi também o iniciador da grande aventura da ocupação humana do Arquipélago cabo-verdiano” a partir do sítio da Ribeira Grande ocupando o vale e ensaiando as primeiras culturas rudimentares. Ali os europeus ergueram a primeira cidade portuguesa na África sub-sahariana, o exato lugar de experimentação de homens , animais e plantas, uma espécie de “Placa giratória entre 3 continentes, recebendo de todos e a todos dando”, segundo a feliz expressão de Daniel Pereira respigada da sua obra “A Importância Histórica da Cidade Velha”. Infelizmente a época áurea da Ribeira Grande, hoje Cidade Velha, durou pouco mais de um século restando dela apenas ruínas, atualmente em franca recuperação lutando pelo seu reconhecimento como Património da Humanidade que de justiça lhe chegará em breve.

AFINIDADES
O Brasil é considerado pelo cabo-verdiano como um irmão, tão parecidos nas raízes comuns, a cultura, o ritmo, a cor, a música, a culinária, o jeito de estar, a alegria, a espontaneidade, o pique. Os trovadores cabo-verdianos até dizem que Cabo Verde é um pedacinho do Brasil. Entre eles se distingue o compositor B. Léza como exemplo mais carismático por ter introduzido o meio-tom na morna tradicional, imprimindo-lhe um particular sabor.
No Nordeste brasileiro as semelhanças são tão flagrantes na forma de estar, nos cheiros e sabores africanos que espanta a todos que visitam por exemplo a Baía; em Fortaleza é praticamente impossível distinguir os estudantes cabo-verdianos dos brasileiros, todos se misturam e se confundem, aliás, por todo o Brasil lá estão eles, os crioulos, com o mesmo jeito de se divertirem em grupo, juntando-se para uma cachupa cabo-verdiana ou uma feijoada brasileira, todos curtem o mesmo violão, os mesmos ritmos, o Carnaval muito semelhante, brindam com a mesma caipirinha (brasileira) ou um ponche das ilhas crioulas.
Os estudantes cabo-verdianos, no Brasil, sentem-se em casa tal como outrora os marinheiros brasileiros se entrosaram com os violões cabo-verdianos no Porto Grande de S. Vicente através do qual se fazia a cosmopolitização do Arquipélago. Foi ali, na amorável cidade do Mindelo que o trovador B. Léza já citado aqui, se deslocou a bordo de um Loyd brasileiro com o seu famoso violão, o “Bronze”, para mostrar os seus talentos e no fim ouviu de um brasileiro gosão o seguinte comentário: “Leva jeito, rapaz, si continuá é capaz di aprendê”. Foi gargalhada geral mas o músico dedicou-se de tal forma ao seu instrumento que numa próxima viagem ouviu um brasileiro enlevado murmurar: “ Qui beleza!” de onde vem o apelido por que ficou conhecido Francisco Xavier da Cruz – B. LÉZA – o inesquecível autor da morna Brasil cujo original crioulo diz mimos como este:
                       
                        “ Brasil, bô ê nosso irmão
                          Sim c’ma nôs bô ê moreno
                          Brasil, nô crêbo tcheu
                          Nô crêbo tcheu di coração.”

                        (Tradução)
                         Brasil, és nosso irmão
                         És moreno como nós
                         Brasil, nós te amamos
                         No fundo do nosso coração

Não é possível falar da fase atual da cooperação entre os dois países e povos sem aprofundar esse lastro fraterno de trocas afetivas e culturais e ainda de sangue que desde sempre liga e irmana os dois povos. É aí que entra o cidadão comum , o homem e a mulher anônimos que consegue essa coisa mágica que é a fusão de povos e culturas que comungam profundos laços e têm a felicidade de poder expressá-los através duma  língua comum. E disso não tenhamos quaisquer dúvidas, os tratados e acordos serão letra morta se o cidadão comum não colocar neles o seu calor, a sua música, a sua arte, a sua literatura, os seus sabores e temperos, as suas danças e ritmos, as suas crenças e tradições, o seu jeito peculiar de ser e estar no mundo.
Vem a propósito lembrar o caso do cabo-verdiano que se notabilizou como pintor e retratista na Corte do Rio de Janeiro. Conhecido no Brasil por Simplício Rodrigues de Sá, esse artista outro não era que o cabo-verdiano Simplício João Rodrigues de Brito nascido na ilha de S. Nicolau, Cabo Verde, e que nos finais do século XVIII teria estudado na Casa Pia de Lisboa (pesquisa de Félix Monteiro publicada na Revista Ponto & Vírgula de Janeiro de 1985).
Mas como teria Simplício chegado à Corte de D. João VI? Julga-se que pela mão de Jean-Baptiste Debret de quem foi aluno exemplar e depois assistente. Debret, pintor francês, chegou ao Brasil em 1816 tendo-se notabilizado primeiro como pintor da Corte e mais tarde pelas suas famosas aguarelas que representam com primor o trabalhador urbano no Brasil, transformando-se assim no maior cronista do quotidiano brasileiro com notável influência nos espíritos  pró-abolicionistas da época.
Não admira nada que um homem como esse tenha escolhido o talentoso mestiço cabo-verdiano, Simplício Rodrigues, para seu assistente e o tenha recomendado para preencher o lugar por ele deixado na Corte.

AS PONTES E OS AFECTOS
As artes musicais e não só, têm sido um terreno privilegiado de partilha de sensibilidades entre os dois povos sendo os artistas brasileiros presença constante nos muitos festivais de música que enchem as praias cabo-verdianas de uma vitalidade inusitada durante os meses mais quentes. Grandes estrelas da música brasileira já desfilaram nos palcos das ilhas, como exemplo Martinho da Vila, Daniela Mercury, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Quinteto Violado que por acaso tem uma ligação antiga com Cabo Verde tendo gravado no início dos anos 70 um disco com músicos cabo-verdianos, ao tempo estudantes na Universidade de Louvain.
Faz algum tempo estando Alcione em Luanda ouviu um colega da banda que lhe dizia:
- Marrom, ouvi aí uma musiquinha de Cabo Verde que é a sua cara!
E a Marrom foi e gravou com a intensidade de que parece ter o monopólio o poema Mamãe-Velha da autoria de Amílcar Cabral***. A mesma música é retomada em 2001 e gravada em dueto por Cesária Évora e Caetano Veloso.
Carlinhos Brown gravou “Direito de Nascê” do compositor cabo-verdiano Manel d’Novas.
Martinho da Vila, só ou com Celina Pereira inclui algumas músicas cabo-verdianas no seu disco LUSOFONIA. Isto só para citar alguns exemplos.
A influência da música brasileira nos cabo-verdianos vem de muito longe. Cantadores cabo-verdianos nascidos na 1ª década do século XX a ela se dedicaram com o mesmo calor que puseram na música do seu país.
As afinidades literárias também têm um peso considerável no percurso literário das elites ilhenhas. Escritores como Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Lígia Fagundes Telles, Vinícius de Morais, Drumond e outros são comuns nas estantes dos intelectuais cabo-verdianos ao lado dos nativos Jorge Barbosa, Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes que se organizaram nos finais dos anos 30 e lançaram um movimento literário e uma revista intitulada CLARIDADE que se veio a revelar uma força aglutinadora imensa e cujos ecos soam até hoje.

CONCLUSÃO
Com a profusão de estudantes cabo-verdianos nas Universidades brasileiras; com os programas de cooperação em ritmo crescente; com as duas culturas se entrecruzando e se intensificando, a ligação que foi de sangue nos idos de quinhentos volta a sê-lo agora numa fusão que tem tudo para dar certo estendendo sólidas pontes de afeto entre os dois povos cada vez mais fortes e mais harmoniosas.
NOTAS
(*) António Leão Correia e Silva – Historiador, Sociólogo e escritor. Autor de vários livros e da História Geral de Cabo Verde. É Reitor da Universidade de Cabo Verde.
(**) Daniel Pereira – Diplomata, Historiador e Escritor. É Embaixador de Cabo Verde no Brasil
(***) Amílcar Lopes Cabral – Poeta, Agrónomo e um dos maiores líderes Africanos. É o pai da Pátria Cabo-verdiana.

(Comunicação apresentada na Feira do Livro e oficina cultural Cândido Portinari) no Brasil-Cidade Ribeirão Preto-Estado de São Paulo