sábado, 24 de abril de 2010

DESENCONTROS BILINGUES


Todo o mundo olhou de lado com evidente desagrado quando há uns anos, num encontro da Lusofonia, um jovem contestatário apareceu numa plenária, mudo e quedo, apenas exibindo no peito um cartaz que dizia: “M’ca ê lusófno”.
- É um exibicionista – diziam uns.
- É para nos pôr em cheque – clamavam outros.
Não faltou um português que, no seu pesado vernáculo, não comentasse: - Tá-se a armar em carapau de corrida!
Mas o jovem, bem do seu, não alterou um músculo nem uma vírgula do seu cartaz. Muitas vezes tenho pensado nesse episódio ao atentar nas dificuldades da nossa coabitação crioulo/português e nos inúmeros e imprevistos escolhos que nos surgem no caminho, tais e tantos que um aluno meu numa aula da sexta classe, me disse passando a mão pela testa no gesto de limpar suores e canseira: “Professora, português ê cansóde!” Foi na verdade a síntese perfeita pois que naquele nível, já se exige leitura, interpretação e escrita fluentes, coisa que nem numa vida inteira de estudos se consegue com perfeição.
Foi no meio da maior brincadeira que um meu companheiro das lides de pena me disse que lhe tinham dito que os meus textos nasciam de partos difíceis. Achei graça ao comentário pois é bem verdade que qualquer parto múltiplo é considerado difícil, e os meus textos, quase sempre são partos múltiplos com um único sobrevivente.
Como cristã-nova, assumida, da religião dos computadores, tenho o fetiche da pena bic e da folha de papel, optando raramente pela escrita directa. Ora, rabiscando no papel, de cada vez que corrijo, sai um novo texto. Depois é só escolher, e nesse sentido o parto se enquadra perfeitamente na categoria dos difíceis. Não crio porém que se trate de caso isolado, antes muito comum que teria levado alguém a dizer que escrever é 5% de inspiração e 95% de transpiração. Não serão aleias a tanta transpiração as armadilhas da língua portuguesa pois está para nascer aquele que nunca tropeçou num lhe ou num se. Só que ao tropeçar uns voltam atrás e tiram a pedra do caminho e outros simplesmente não percebem que tropeçaram.
Voltando ainda ao jovem rebelde há pouco referido, fico imaginando o percurso que teria levado à tal conclusão do cartaz, fruto não só das próprias convicções políticas e das dificuldades enfrentadas, mas ainda ajudado por algumas entrevistas que passam nas nossas rádios e televisão que, sem dúvida, lhe dão razão.
Nem sempre a linguagem empolada dos jornalistas consegue o retorno adequado, o que resulta em ruídos de comunicação, no mínimo cómicos. Tais ruídos, todavia, poderão sê-lo apenas à superfície pois que se nos debruçar-nos atentamente sobre eles, percebemos no fundo de alguns, um claro e transparente som, quase sempre recheado de sabedoria. Vejamos por exemplo o tão badalado caso da Cize no Japão. Solicitada a deixar uma mensagem às mulheres japonesas, a Cize respondeu apenas: “P’ês dzinrascá!” Faltou o chão ao treinado jornalista português e, todavia, a Cize estava certíssima. Uma mulher, como ela, que depois dos 50 anos pegara a vida pelos cornos saltando para os maiores palcos do mundo, estava apenas desejando que cada mulher japonesa fizesse o mesmo com as armas que tivesse.
Foi há bem pouco tempo, numa das escaramuças na Guiné-Bissau, creio que na altura da morte de Ansumane Mané, que ouvi que ouvi na TV uma brevíssima reportagem, tão breve quanto eloquente dos nossos desencontros:
- Acabou a guerra? – perguntou o repórter a um militar graduado.
A resposta veio sem hesitações:
- O guera já acabei!
- Viu por onde fugiu o General Mané? – insistiu o repórter. Outra resposta igualmente rápida:
- Não, não vi-me.
Ainda que se trate de um caso passado em outro país, serve apenas para mostrar como estamos irmanados na casa comum que é a Lusofonia.
Recuando um pouco mais, à década de 80, decorria em Mindelo o Simpósio Claridade. Um jornalista entusiasma-se numa entrevista a um cantor de botequim e atira-lhe esta questão:
- Mindelo vive dias de glória com o Simpósio Claridade. O que pensa disso?
Coitado do rapazinho que nunca em tal ouvira falar, mas no estilo bem mindelense que nunca se atrapalha, responde:
- M’ca sabê se bô ti t’oiá, má claridade sempe fui claridade e el ti ta bem continuá ta ser.
Aí sim, foi ruído mesmo para não dizer escuridão total onde o jornalista se perdeu deliberadamente e foi bem feito. Este caso de há mais de 20 anos foi catapultado para a minha memória pelo som duma outra entrevista muito mais recente em que se perguntava a um artista da diáspora se tinha algo a dizer sobre a comunidade cabo-verdiana no país onde vive. A resposta aparentemente impenetrável chegou assim:
- Esse cosa, moda bô sabê, tem comunidade e ca tem comunidade.
Não era fácil decifrar tal resposta se não tivesse logo avançado com outros elementos que deixavam compreender que os crioulos na diáspora se envolvem em “riolas” mil e se viram uns contra os outros, não sendo por isso adequado chamá-los de comunidade, que no justo entender do entrevistado, é pressuposto ser gente com problemas comuns e que deve unir-se para os resolver.
Escolhi estes casos, todos reais, por considerá-los paradigmáticos dos nossos eternos desencontros bilingues, raramente assumidos, pois não nos bastando dominar o crioulo, o nosso orgulho se exalta demais quando alguém nos diz que dominamos a língua de Camões, mesmo que quem faz tal apreciação seja a menos qualificada das criaturas.
“Fátima Bettencourt”
Fev/2002