terça-feira, 3 de junho de 2014

RIBEIRÃO DO MEU CONTENTAMENTO


Acho que já o disse antes, mas vou repetir: é de alma lavada que regresso de Ribeirão Preto onde, num grupo de escritores da Academia Cabo-verdiana de Letras, participei nos eventos culturais ali realizados, a 14ª Feira do livro de Ribeirão Preto e particularmente a Oficina Cultural Cândido Portinari, célebre político, poeta, professor e sobretudo pintor do povo brasileiro (1903-1962). Decorre a Oficina num outro ex-libris da cidade, a centenária Biblioteca Padre Euclides.
A preservação e dinamização do espaço corre por conta da querida Fatu Antunes, uma cabo-verdiana de gema e “menininha de Soncente” pa desaforo, que vive no Brasil há muito e agora empresta o seu talento a Ribeirão Preto sem, todavia, esquecer as suas ilhas de “pedra e vento” no dizer poético de Manuel Lopes. Foi assim que Fatu moveu céus, terra e cofres até levar a Ribeirão a delegação de escritores de que fiz parte.
Os 5 escritores que Corsino Fortes comparou aos dedos da mão pela cumplicidade e complementaridade das intervenções, levaram o trabalho de casa afinado o que, juntando-se à generosidade dos nossos anfitriões em Ribeirão e S. Carlos, permitiu um alto nível de desempenho apreciado por todos.
Desde as “Prosas de Saberes” envolvendo a literatura infanto-juvenil num criativo diálogo entre texto e imagem e o tema geral “Lendo África” até “Combinando palavras com Vera Duarte” em show de Rap e de carinho no secular teatro D. Pedro II, passando pela experiência de escrever a partir de Cabo Verde, o percurso da literatura do Arquipélago em Power-Point e verbo solto de Brito Semedo ou Dany Spínola, o magnífico dueto de poesia entre Corsa de David e Alfredo Rosseti, sem esquecer o pano de fundo da Ponte de Afetos entre Brasil e Cabo Verde estendido por Fátima Bettencourt. Tudo se encaixou para erguer um edifício sólido que colocou o nosso país, moda badiu ta fla, “Riba lá”.
E como se não bastasse vieram os maravilhosos momentos de convívio com amigos antigos e recentes, qual deles o mais querido e inesquecível. Momentos que não posso deixar de referir, paralelos ao programa oficial, mas nem por isso menos gostosos, com Lauro Moreira, deliciosa surpresa e delicioso convívio no seu belíssimo apartamento com a gentilíssima esposa, bebericando uma água tónica com gelo e limão enquanto se visualizava um vídeo de poesia em que o talentoso Lauro mistura sensibilidades poéticas e musicais incluindo Jorge Barbosa e Ildo Lobo. Um raro privilégio!
Outro momento igualmente inesquecível foi o almoço em casa da Semíramis, qual raínha lendária da antiguidade, semeando, em vez de jardins suspensos, beleza e magia nos livros para crianças (dela e dos outros), quisera eu vir a ser um desses outros! Ora essa beleza e magia não são ferramentas de que Semi lança mão apenas no trabalho. É tão somente a natureza dela. Foi assim que reuniu toda a família sob a asa protetora da Dona Leia para homenagear da forma mais calorosa o grupo de escritores cabo-verdianos. Embandeirados em arco colocaram uma bandeira de Cabo Verde ao lado duma brasileira com fundo musical de Cesária Évora. Confesso que foi difícil conter a emoção até porque outros momentos se sucediam já que aquela magia é marca da família. Haja coração!
Todos sem exceção estão agora aqui no lado esquerdo do meu peito: Dona Leia e suas ternas mãos no meu rosto dizendo: “Você é linda! Tem uma aura tão bonita!”; The Queen como eu chamo à irmã pianista, ela sabe porquê; Jonathan se equilibrando sobre uma cadeira ou muro à procura do melhor ângulo, Canon em punho; todos os irmãos, cunhadas,  da Semi, que família linda e que casa, digo mais, que lar! Guardado por um gato de pedra, obra da Semi que diz que o bichano não é dela, mas pulou o muro do jardim, instalou-se e nunca mais foi embora. Como eu entendo esse gato! Eu própria achei aquele lugar muito próximo do paraíso. O meu abraço deste lado do mar. Saravá queridos amigos!
                                                                                             Fátima Bettencourt – 03 Junho 2014

sexta-feira, 23 de maio de 2014

BRASIL E CABO VERDE – UMA PONTE DE AFETOS

Ainda que nas antípodas um do outro em termos físicos, económicos, de recursos naturais, importância política no concerto das Nações e em muitas e variadas vertentes, é espantoso o leque de afinidades e semelhanças entre o Brasil e Cabo Verde bem como as manifestações de afeto que dum e doutro lado do mar estenderam pontes que prevalecem cada vez mais fortes e promissoras, através dos tempos até aos dias de hoje, em que a cooperação, nomeadamente com o Estado do Ceará, vive um momento muito significativo com um sem número de programas em desenvolvimento e centenas senão milhares de estudantes cabo-verdianos frequentando cursos superiores, médios e profissionais em Escolas e Universidades espalhadas pelo Brasil inteiro.

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS
Foi no ano de 1500 que o Almirante português Pedro Álvares Cabral, viajando para a Índia teve de repente a ideia de se desviar para Ocidente e em tão feliz momento o fez que acabou por descobrir o Brasil no dia 22 de Abril. Deu-lhe então o nome de Vera Cruz, logo substituído por Santa Cruz e mais tarde Brasil. Ainda que várias outras nações andassem rondando pela zona o certo é que Pedro Álvares Cabral tomou posse formal da terra em nome do seu Rei D. Manuel I de Portugal. Mas só em 1531 é que seria tentada a primeira experiência colonizadora do novo domínio tendo Portugal enviado para tal uma esquadra e 300 colonos liderados por Martim Afonso de Sousa que fundou S. Vicente e mais para o interior Paratininga, atual S. Paulo.
40 anos antes (1460) alguns navegadores da Casa do Infante tinham achado as Ilhas de Cabo Verde. Há controvérsias quanto à identificação segura desses homens: fala-se em Luís de Cadamosto, Gonçalves Dias, Diogo Gomes, António da Noli, sendo este último o que reúne maior consenso como o achador da Ilha de Santiago e das restantes ilhas do Arquipélago de Cabo Verde. Desertas, pobres de recursos naturais, ninguém suspeitaria então dos fortes laços que as ligariam mais tarde ao Brasil.
Segundo o Historiador cabo-verdiano António Leão Correia e Silva* no seu livro Combates pela História, “as relações entre Brasil e Cabo Verde perdem-se no tempo” pois a colonização do primeiro a seguir a 1500 foi feita a partir de Cabo Verde uma vez que o Arquipélago, transformado em interposto do comércio escravo e ao mesmo tempo laboratório de pesquisas e experimentações de natureza vária, iria fornecer ao Brasil a mão de obra necessária à exploração dos seus vastos recursos naturais. Além de homens Cabo Verde forneceria ao Brasil animais e plantas como se verifica por registo do Historiador atrás referido citando o Senhor de Engenho Gabriel Soares de Souza que teria deixado documento escrito atestando que os primeiros inhames, as primeiras cabras e vacas que chegaram à Baía foram da ilha de Cabo Verde (designação antiga para referir a ilha de Santiago).
Correia e Silva na mesma obra ainda acrescenta “estilos de vida e modos de organização da sociedade foram igualmente transplantados das ilhas onde, aliás, se construiu pela primeira vez uma sociedade de convívio prolongado entre negros e brancos”.
Segundo outro Historiador cabo-verdiano, Daniel Pereira**, “o Navegador António da Noli foi também o iniciador da grande aventura da ocupação humana do Arquipélago cabo-verdiano” a partir do sítio da Ribeira Grande ocupando o vale e ensaiando as primeiras culturas rudimentares. Ali os europeus ergueram a primeira cidade portuguesa na África sub-sahariana, o exato lugar de experimentação de homens , animais e plantas, uma espécie de “Placa giratória entre 3 continentes, recebendo de todos e a todos dando”, segundo a feliz expressão de Daniel Pereira respigada da sua obra “A Importância Histórica da Cidade Velha”. Infelizmente a época áurea da Ribeira Grande, hoje Cidade Velha, durou pouco mais de um século restando dela apenas ruínas, atualmente em franca recuperação lutando pelo seu reconhecimento como Património da Humanidade que de justiça lhe chegará em breve.

AFINIDADES
O Brasil é considerado pelo cabo-verdiano como um irmão, tão parecidos nas raízes comuns, a cultura, o ritmo, a cor, a música, a culinária, o jeito de estar, a alegria, a espontaneidade, o pique. Os trovadores cabo-verdianos até dizem que Cabo Verde é um pedacinho do Brasil. Entre eles se distingue o compositor B. Léza como exemplo mais carismático por ter introduzido o meio-tom na morna tradicional, imprimindo-lhe um particular sabor.
No Nordeste brasileiro as semelhanças são tão flagrantes na forma de estar, nos cheiros e sabores africanos que espanta a todos que visitam por exemplo a Baía; em Fortaleza é praticamente impossível distinguir os estudantes cabo-verdianos dos brasileiros, todos se misturam e se confundem, aliás, por todo o Brasil lá estão eles, os crioulos, com o mesmo jeito de se divertirem em grupo, juntando-se para uma cachupa cabo-verdiana ou uma feijoada brasileira, todos curtem o mesmo violão, os mesmos ritmos, o Carnaval muito semelhante, brindam com a mesma caipirinha (brasileira) ou um ponche das ilhas crioulas.
Os estudantes cabo-verdianos, no Brasil, sentem-se em casa tal como outrora os marinheiros brasileiros se entrosaram com os violões cabo-verdianos no Porto Grande de S. Vicente através do qual se fazia a cosmopolitização do Arquipélago. Foi ali, na amorável cidade do Mindelo que o trovador B. Léza já citado aqui, se deslocou a bordo de um Loyd brasileiro com o seu famoso violão, o “Bronze”, para mostrar os seus talentos e no fim ouviu de um brasileiro gosão o seguinte comentário: “Leva jeito, rapaz, si continuá é capaz di aprendê”. Foi gargalhada geral mas o músico dedicou-se de tal forma ao seu instrumento que numa próxima viagem ouviu um brasileiro enlevado murmurar: “ Qui beleza!” de onde vem o apelido por que ficou conhecido Francisco Xavier da Cruz – B. LÉZA – o inesquecível autor da morna Brasil cujo original crioulo diz mimos como este:
                       
                        “ Brasil, bô ê nosso irmão
                          Sim c’ma nôs bô ê moreno
                          Brasil, nô crêbo tcheu
                          Nô crêbo tcheu di coração.”

                        (Tradução)
                         Brasil, és nosso irmão
                         És moreno como nós
                         Brasil, nós te amamos
                         No fundo do nosso coração

Não é possível falar da fase atual da cooperação entre os dois países e povos sem aprofundar esse lastro fraterno de trocas afetivas e culturais e ainda de sangue que desde sempre liga e irmana os dois povos. É aí que entra o cidadão comum , o homem e a mulher anônimos que consegue essa coisa mágica que é a fusão de povos e culturas que comungam profundos laços e têm a felicidade de poder expressá-los através duma  língua comum. E disso não tenhamos quaisquer dúvidas, os tratados e acordos serão letra morta se o cidadão comum não colocar neles o seu calor, a sua música, a sua arte, a sua literatura, os seus sabores e temperos, as suas danças e ritmos, as suas crenças e tradições, o seu jeito peculiar de ser e estar no mundo.
Vem a propósito lembrar o caso do cabo-verdiano que se notabilizou como pintor e retratista na Corte do Rio de Janeiro. Conhecido no Brasil por Simplício Rodrigues de Sá, esse artista outro não era que o cabo-verdiano Simplício João Rodrigues de Brito nascido na ilha de S. Nicolau, Cabo Verde, e que nos finais do século XVIII teria estudado na Casa Pia de Lisboa (pesquisa de Félix Monteiro publicada na Revista Ponto & Vírgula de Janeiro de 1985).
Mas como teria Simplício chegado à Corte de D. João VI? Julga-se que pela mão de Jean-Baptiste Debret de quem foi aluno exemplar e depois assistente. Debret, pintor francês, chegou ao Brasil em 1816 tendo-se notabilizado primeiro como pintor da Corte e mais tarde pelas suas famosas aguarelas que representam com primor o trabalhador urbano no Brasil, transformando-se assim no maior cronista do quotidiano brasileiro com notável influência nos espíritos  pró-abolicionistas da época.
Não admira nada que um homem como esse tenha escolhido o talentoso mestiço cabo-verdiano, Simplício Rodrigues, para seu assistente e o tenha recomendado para preencher o lugar por ele deixado na Corte.

AS PONTES E OS AFECTOS
As artes musicais e não só, têm sido um terreno privilegiado de partilha de sensibilidades entre os dois povos sendo os artistas brasileiros presença constante nos muitos festivais de música que enchem as praias cabo-verdianas de uma vitalidade inusitada durante os meses mais quentes. Grandes estrelas da música brasileira já desfilaram nos palcos das ilhas, como exemplo Martinho da Vila, Daniela Mercury, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Quinteto Violado que por acaso tem uma ligação antiga com Cabo Verde tendo gravado no início dos anos 70 um disco com músicos cabo-verdianos, ao tempo estudantes na Universidade de Louvain.
Faz algum tempo estando Alcione em Luanda ouviu um colega da banda que lhe dizia:
- Marrom, ouvi aí uma musiquinha de Cabo Verde que é a sua cara!
E a Marrom foi e gravou com a intensidade de que parece ter o monopólio o poema Mamãe-Velha da autoria de Amílcar Cabral***. A mesma música é retomada em 2001 e gravada em dueto por Cesária Évora e Caetano Veloso.
Carlinhos Brown gravou “Direito de Nascê” do compositor cabo-verdiano Manel d’Novas.
Martinho da Vila, só ou com Celina Pereira inclui algumas músicas cabo-verdianas no seu disco LUSOFONIA. Isto só para citar alguns exemplos.
A influência da música brasileira nos cabo-verdianos vem de muito longe. Cantadores cabo-verdianos nascidos na 1ª década do século XX a ela se dedicaram com o mesmo calor que puseram na música do seu país.
As afinidades literárias também têm um peso considerável no percurso literário das elites ilhenhas. Escritores como Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Lígia Fagundes Telles, Vinícius de Morais, Drumond e outros são comuns nas estantes dos intelectuais cabo-verdianos ao lado dos nativos Jorge Barbosa, Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes que se organizaram nos finais dos anos 30 e lançaram um movimento literário e uma revista intitulada CLARIDADE que se veio a revelar uma força aglutinadora imensa e cujos ecos soam até hoje.

CONCLUSÃO
Com a profusão de estudantes cabo-verdianos nas Universidades brasileiras; com os programas de cooperação em ritmo crescente; com as duas culturas se entrecruzando e se intensificando, a ligação que foi de sangue nos idos de quinhentos volta a sê-lo agora numa fusão que tem tudo para dar certo estendendo sólidas pontes de afeto entre os dois povos cada vez mais fortes e mais harmoniosas.
NOTAS
(*) António Leão Correia e Silva – Historiador, Sociólogo e escritor. Autor de vários livros e da História Geral de Cabo Verde. É Reitor da Universidade de Cabo Verde.
(**) Daniel Pereira – Diplomata, Historiador e Escritor. É Embaixador de Cabo Verde no Brasil
(***) Amílcar Lopes Cabral – Poeta, Agrónomo e um dos maiores líderes Africanos. É o pai da Pátria Cabo-verdiana.

(Comunicação apresentada na Feira do Livro e oficina cultural Cândido Portinari) no Brasil-Cidade Ribeirão Preto-Estado de São Paulo

sábado, 24 de abril de 2010

DESENCONTROS BILINGUES


Todo o mundo olhou de lado com evidente desagrado quando há uns anos, num encontro da Lusofonia, um jovem contestatário apareceu numa plenária, mudo e quedo, apenas exibindo no peito um cartaz que dizia: “M’ca ê lusófno”.
- É um exibicionista – diziam uns.
- É para nos pôr em cheque – clamavam outros.
Não faltou um português que, no seu pesado vernáculo, não comentasse: - Tá-se a armar em carapau de corrida!
Mas o jovem, bem do seu, não alterou um músculo nem uma vírgula do seu cartaz. Muitas vezes tenho pensado nesse episódio ao atentar nas dificuldades da nossa coabitação crioulo/português e nos inúmeros e imprevistos escolhos que nos surgem no caminho, tais e tantos que um aluno meu numa aula da sexta classe, me disse passando a mão pela testa no gesto de limpar suores e canseira: “Professora, português ê cansóde!” Foi na verdade a síntese perfeita pois que naquele nível, já se exige leitura, interpretação e escrita fluentes, coisa que nem numa vida inteira de estudos se consegue com perfeição.
Foi no meio da maior brincadeira que um meu companheiro das lides de pena me disse que lhe tinham dito que os meus textos nasciam de partos difíceis. Achei graça ao comentário pois é bem verdade que qualquer parto múltiplo é considerado difícil, e os meus textos, quase sempre são partos múltiplos com um único sobrevivente.
Como cristã-nova, assumida, da religião dos computadores, tenho o fetiche da pena bic e da folha de papel, optando raramente pela escrita directa. Ora, rabiscando no papel, de cada vez que corrijo, sai um novo texto. Depois é só escolher, e nesse sentido o parto se enquadra perfeitamente na categoria dos difíceis. Não crio porém que se trate de caso isolado, antes muito comum que teria levado alguém a dizer que escrever é 5% de inspiração e 95% de transpiração. Não serão aleias a tanta transpiração as armadilhas da língua portuguesa pois está para nascer aquele que nunca tropeçou num lhe ou num se. Só que ao tropeçar uns voltam atrás e tiram a pedra do caminho e outros simplesmente não percebem que tropeçaram.
Voltando ainda ao jovem rebelde há pouco referido, fico imaginando o percurso que teria levado à tal conclusão do cartaz, fruto não só das próprias convicções políticas e das dificuldades enfrentadas, mas ainda ajudado por algumas entrevistas que passam nas nossas rádios e televisão que, sem dúvida, lhe dão razão.
Nem sempre a linguagem empolada dos jornalistas consegue o retorno adequado, o que resulta em ruídos de comunicação, no mínimo cómicos. Tais ruídos, todavia, poderão sê-lo apenas à superfície pois que se nos debruçar-nos atentamente sobre eles, percebemos no fundo de alguns, um claro e transparente som, quase sempre recheado de sabedoria. Vejamos por exemplo o tão badalado caso da Cize no Japão. Solicitada a deixar uma mensagem às mulheres japonesas, a Cize respondeu apenas: “P’ês dzinrascá!” Faltou o chão ao treinado jornalista português e, todavia, a Cize estava certíssima. Uma mulher, como ela, que depois dos 50 anos pegara a vida pelos cornos saltando para os maiores palcos do mundo, estava apenas desejando que cada mulher japonesa fizesse o mesmo com as armas que tivesse.
Foi há bem pouco tempo, numa das escaramuças na Guiné-Bissau, creio que na altura da morte de Ansumane Mané, que ouvi que ouvi na TV uma brevíssima reportagem, tão breve quanto eloquente dos nossos desencontros:
- Acabou a guerra? – perguntou o repórter a um militar graduado.
A resposta veio sem hesitações:
- O guera já acabei!
- Viu por onde fugiu o General Mané? – insistiu o repórter. Outra resposta igualmente rápida:
- Não, não vi-me.
Ainda que se trate de um caso passado em outro país, serve apenas para mostrar como estamos irmanados na casa comum que é a Lusofonia.
Recuando um pouco mais, à década de 80, decorria em Mindelo o Simpósio Claridade. Um jornalista entusiasma-se numa entrevista a um cantor de botequim e atira-lhe esta questão:
- Mindelo vive dias de glória com o Simpósio Claridade. O que pensa disso?
Coitado do rapazinho que nunca em tal ouvira falar, mas no estilo bem mindelense que nunca se atrapalha, responde:
- M’ca sabê se bô ti t’oiá, má claridade sempe fui claridade e el ti ta bem continuá ta ser.
Aí sim, foi ruído mesmo para não dizer escuridão total onde o jornalista se perdeu deliberadamente e foi bem feito. Este caso de há mais de 20 anos foi catapultado para a minha memória pelo som duma outra entrevista muito mais recente em que se perguntava a um artista da diáspora se tinha algo a dizer sobre a comunidade cabo-verdiana no país onde vive. A resposta aparentemente impenetrável chegou assim:
- Esse cosa, moda bô sabê, tem comunidade e ca tem comunidade.
Não era fácil decifrar tal resposta se não tivesse logo avançado com outros elementos que deixavam compreender que os crioulos na diáspora se envolvem em “riolas” mil e se viram uns contra os outros, não sendo por isso adequado chamá-los de comunidade, que no justo entender do entrevistado, é pressuposto ser gente com problemas comuns e que deve unir-se para os resolver.
Escolhi estes casos, todos reais, por considerá-los paradigmáticos dos nossos eternos desencontros bilingues, raramente assumidos, pois não nos bastando dominar o crioulo, o nosso orgulho se exalta demais quando alguém nos diz que dominamos a língua de Camões, mesmo que quem faz tal apreciação seja a menos qualificada das criaturas.
“Fátima Bettencourt”
Fev/2002

terça-feira, 4 de março de 2008

Mar – Caminho Adubado de Esperança (Contos)



Chegar e partir foram, desde sempre, o selo da formação do povo cabo-verdiano.
O homem cabo-verdiano que transporta uma cultura bem sedimentada, é frequentemente confrontado com culturas diferentes, sente que é diferente, mas não abre mão das suas marcas identitárias. Ainda assim tem conseguido o compromisso possível entre as duas realidades: a sua e a do outro.
A gestão desse binómio produz fenómenos de adaptação muito curiosos e dignos de estudo para a compreensão da nação global que hoje somos. Com o saber adquirido através dos muitos esquemas de sobrevivência que vai inventando, o homem crioulo, na Diáspora, é portador de uma criatividade espantosa, o nosso emigrante vai misturando as duas vivências, procurando o equilíbrio possível entre elas até criar um espaço de respeito, valorização e reconhecimento.
É dessa saga anónima que saem os contos desta colectânea que a autora dedica a todos os emigrantes cabo-verdianos espalhados pelas sete partidas.
Os contos em número de dez (10) perfazem um total de 150 páginas A4. Variam entre 6 a 18 páginas em que a autora ficciona a realidade da vida dos emigrantes tanto nos países de acolhimento como na sua terra natal, realçando os temas do amor à terra, alguma desagregação familiar, o desejo do regresso, a participação no desenvolvimento. Passam ainda a ideia de que aos poucos o cabo-verdiano vai-se habituando a realizar os seus sonhos na sua própria terra sem necessariamente ter que partir. Aprofunda todavia a ligação ao torrão natal para a grande maioria cuja vida tem raízes seguras nos países de acolhimento.
Resumindo, estas histórias fundamentam-se no pressuposto de que a Nação Cabo-verdiana transborda das ilhas e se existe nestas pedras algo eterno que conforta a alma cabo-verdiana, nos emociona e nos projecta como homens e mulheres, então no coração simbólico das Ilhas há lugar para todos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Poema

"Quando as ondas abrem sobre o mar
olhos de carvão & milho verde
Do arco & flecha da memória
corpo & rosto de mar! nascia
Coreógrafo! na elegância de ser chama
no ouro verde/negro da nudez
o Aroma do vento…na ventania contida
Entre íris & lâmina! corpo & alma..."

- Corsino Fortes -