Ainda
que nas antípodas um do outro em termos físicos, económicos, de recursos naturais,
importância política no concerto das Nações e em muitas e variadas vertentes, é
espantoso o leque de afinidades e semelhanças entre o Brasil e Cabo Verde bem
como as manifestações de afeto que dum e doutro lado do mar estenderam pontes
que prevalecem cada vez mais fortes e promissoras, através dos tempos até aos
dias de hoje, em que a cooperação, nomeadamente com o Estado do Ceará, vive um
momento muito significativo com um sem número de programas em desenvolvimento e
centenas senão milhares de estudantes cabo-verdianos frequentando cursos
superiores, médios e profissionais em Escolas e Universidades espalhadas pelo
Brasil inteiro.
FUNDAMENTOS HISTÓRICOS
Foi
no ano de 1500 que o Almirante português Pedro Álvares Cabral, viajando para a
Índia teve de repente a ideia de se desviar para Ocidente e em tão feliz
momento o fez que acabou por descobrir o Brasil no dia 22 de Abril. Deu-lhe
então o nome de Vera Cruz, logo substituído por Santa Cruz e mais tarde Brasil.
Ainda que várias outras nações andassem rondando pela zona o certo é que Pedro
Álvares Cabral tomou posse formal da terra em nome do seu Rei D. Manuel I de
Portugal. Mas só em 1531 é que seria tentada a primeira experiência
colonizadora do novo domínio tendo Portugal enviado para tal uma esquadra e 300
colonos liderados por Martim Afonso de Sousa que fundou S. Vicente e mais para
o interior Paratininga, atual S. Paulo.
40
anos antes (1460) alguns navegadores da Casa do Infante tinham achado as Ilhas
de Cabo Verde. Há controvérsias quanto à identificação segura desses homens: fala-se
em Luís de Cadamosto, Gonçalves Dias, Diogo Gomes, António da Noli, sendo este
último o que reúne maior consenso como o achador da Ilha de Santiago e das
restantes ilhas do Arquipélago de Cabo Verde. Desertas, pobres de recursos naturais,
ninguém suspeitaria então dos fortes laços que as ligariam mais tarde ao
Brasil.
Segundo
o Historiador cabo-verdiano António Leão Correia e Silva* no seu livro Combates
pela História, “as relações entre Brasil
e Cabo Verde perdem-se no tempo” pois a colonização do primeiro a seguir a
1500 foi feita a partir de Cabo Verde uma vez que o Arquipélago, transformado
em interposto do comércio escravo e ao mesmo tempo laboratório de pesquisas e
experimentações de natureza vária, iria fornecer ao Brasil a mão de obra
necessária à exploração dos seus vastos recursos naturais. Além de homens Cabo
Verde forneceria ao Brasil animais e plantas como se verifica por registo do
Historiador atrás referido citando o Senhor de Engenho Gabriel Soares de Souza
que teria deixado documento escrito atestando que os primeiros inhames, as
primeiras cabras e vacas que chegaram à Baía foram da ilha de Cabo Verde
(designação antiga para referir a ilha de Santiago).
Correia
e Silva na mesma obra ainda acrescenta “estilos
de vida e modos de organização da sociedade foram igualmente transplantados das
ilhas onde, aliás, se construiu pela primeira vez uma sociedade de convívio
prolongado entre negros e brancos”.
Segundo
outro Historiador cabo-verdiano, Daniel Pereira**, “o Navegador António da Noli
foi também o iniciador da grande aventura da ocupação humana do Arquipélago
cabo-verdiano” a partir do sítio da
Ribeira Grande ocupando o vale e ensaiando as primeiras culturas rudimentares. Ali
os europeus ergueram a primeira cidade portuguesa na África sub-sahariana, o
exato lugar de experimentação de homens , animais e plantas, uma espécie de “Placa giratória entre 3 continentes,
recebendo de todos e a todos dando”,
segundo a feliz expressão de Daniel Pereira respigada da sua obra “A Importância
Histórica da Cidade Velha”. Infelizmente a época áurea da Ribeira Grande, hoje
Cidade Velha, durou pouco mais de um século restando dela apenas ruínas, atualmente
em franca recuperação lutando pelo seu reconhecimento como Património da
Humanidade que de justiça lhe chegará em breve.
AFINIDADES
O
Brasil é considerado pelo cabo-verdiano como um irmão, tão parecidos nas raízes
comuns, a cultura, o ritmo, a cor, a música, a culinária, o jeito de estar, a
alegria, a espontaneidade, o pique. Os trovadores cabo-verdianos até dizem que
Cabo Verde é um pedacinho do Brasil. Entre eles se distingue o compositor B.
Léza como exemplo mais carismático por ter introduzido o meio-tom na morna
tradicional, imprimindo-lhe um particular sabor.
No
Nordeste brasileiro as semelhanças são tão flagrantes na forma de estar, nos
cheiros e sabores africanos que espanta a todos que visitam por exemplo a Baía;
em Fortaleza é praticamente impossível distinguir os estudantes cabo-verdianos
dos brasileiros, todos se misturam e se confundem, aliás, por todo o Brasil lá
estão eles, os crioulos, com o mesmo jeito de se divertirem em grupo,
juntando-se para uma cachupa cabo-verdiana ou uma feijoada brasileira, todos
curtem o mesmo violão, os mesmos ritmos, o Carnaval muito semelhante, brindam
com a mesma caipirinha (brasileira) ou um ponche das ilhas crioulas.
Os
estudantes cabo-verdianos, no Brasil, sentem-se em casa tal como outrora os
marinheiros brasileiros se entrosaram com os violões cabo-verdianos no Porto
Grande de S. Vicente através do qual se fazia a cosmopolitização do
Arquipélago. Foi ali, na amorável cidade do Mindelo que o trovador B. Léza já
citado aqui, se deslocou a bordo de um Loyd brasileiro com o seu famoso violão,
o “Bronze”, para mostrar os seus talentos e no fim ouviu de um brasileiro gosão
o seguinte comentário: “Leva jeito, rapaz, si continuá é capaz di aprendê”. Foi
gargalhada geral mas o músico dedicou-se de tal forma ao seu instrumento que
numa próxima viagem ouviu um brasileiro enlevado murmurar: “ Qui beleza!” de
onde vem o apelido por que ficou conhecido Francisco Xavier da Cruz – B. LÉZA –
o inesquecível autor da morna Brasil cujo original crioulo diz mimos como este:
“ Brasil, bô ê nosso
irmão
Sim c’ma nôs bô ê moreno
Brasil, nô crêbo tcheu
Nô crêbo tcheu di coração.”
(Tradução)
Brasil, és nosso irmão
És moreno como nós
Brasil, nós te amamos
No fundo do nosso
coração
Não
é possível falar da fase atual da cooperação entre os dois países e povos sem
aprofundar esse lastro fraterno de trocas afetivas e culturais e ainda de
sangue que desde sempre liga e irmana os dois povos. É aí que entra o cidadão
comum , o homem e a mulher anônimos que consegue essa coisa mágica que é a
fusão de povos e culturas que comungam profundos laços e têm a felicidade de
poder expressá-los através duma língua
comum. E disso não tenhamos quaisquer dúvidas, os tratados e acordos serão
letra morta se o cidadão comum não colocar neles o seu calor, a sua música, a
sua arte, a sua literatura, os seus sabores e temperos, as suas danças e
ritmos, as suas crenças e tradições, o seu jeito peculiar de ser e estar no
mundo.
Vem
a propósito lembrar o caso do cabo-verdiano que se notabilizou como pintor e
retratista na Corte do Rio de Janeiro. Conhecido no Brasil por Simplício
Rodrigues de Sá, esse artista outro não era que o cabo-verdiano Simplício João
Rodrigues de Brito nascido na ilha de S. Nicolau, Cabo Verde, e que nos finais
do século XVIII teria estudado na Casa Pia de Lisboa (pesquisa de Félix
Monteiro publicada na Revista Ponto & Vírgula de Janeiro de 1985).
Mas
como teria Simplício chegado à Corte de D. João VI? Julga-se que pela mão de
Jean-Baptiste Debret de quem foi aluno exemplar e depois assistente. Debret,
pintor francês, chegou ao Brasil em 1816 tendo-se notabilizado primeiro como
pintor da Corte e mais tarde pelas suas famosas aguarelas que representam com
primor o trabalhador urbano no Brasil, transformando-se assim no maior cronista
do quotidiano brasileiro com notável influência nos espíritos pró-abolicionistas da época.
Não
admira nada que um homem como esse tenha escolhido o talentoso mestiço
cabo-verdiano, Simplício Rodrigues, para seu assistente e o tenha recomendado
para preencher o lugar por ele deixado na Corte.
AS PONTES E OS AFECTOS
As
artes musicais e não só, têm sido um terreno privilegiado de partilha de
sensibilidades entre os dois povos sendo os artistas brasileiros presença
constante nos muitos festivais de música que enchem as praias cabo-verdianas de
uma vitalidade inusitada durante os meses mais quentes. Grandes estrelas da
música brasileira já desfilaram nos palcos das ilhas, como exemplo Martinho da
Vila, Daniela Mercury, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Quinteto Violado que por
acaso tem uma ligação antiga com Cabo Verde tendo gravado no início dos anos 70
um disco com músicos cabo-verdianos, ao tempo estudantes na Universidade de
Louvain.
Faz
algum tempo estando Alcione em Luanda ouviu um colega da banda que lhe dizia:
-
Marrom, ouvi aí uma musiquinha de Cabo Verde que é a sua cara!
E
a Marrom foi e gravou com a intensidade de que parece ter o monopólio o poema
Mamãe-Velha da autoria de Amílcar Cabral***. A mesma música é retomada em 2001
e gravada em dueto por Cesária Évora e Caetano Veloso.
Carlinhos
Brown gravou “Direito de Nascê” do compositor cabo-verdiano Manel d’Novas.
Martinho
da Vila, só ou com Celina Pereira inclui algumas músicas cabo-verdianas no seu
disco LUSOFONIA. Isto só para citar alguns exemplos.
A
influência da música brasileira nos cabo-verdianos vem de muito longe. Cantadores
cabo-verdianos nascidos na 1ª década do século XX a ela se dedicaram com o
mesmo calor que puseram na música do seu país.
As
afinidades literárias também têm um peso considerável no percurso literário das
elites ilhenhas. Escritores como Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, João Cabral de Melo Neto, Lígia Fagundes Telles, Vinícius de Morais, Drumond
e outros são comuns nas estantes dos intelectuais cabo-verdianos ao lado dos
nativos Jorge Barbosa, Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes que se organizaram
nos finais dos anos 30 e lançaram um movimento literário e uma revista
intitulada CLARIDADE que se veio a revelar uma força aglutinadora imensa e
cujos ecos soam até hoje.
CONCLUSÃO
Com
a profusão de estudantes cabo-verdianos nas Universidades brasileiras; com os
programas de cooperação em ritmo crescente; com as duas culturas se
entrecruzando e se intensificando, a ligação que foi de sangue nos idos de
quinhentos volta a sê-lo agora numa fusão que tem tudo para dar certo
estendendo sólidas pontes de afeto entre os dois povos cada vez mais fortes e
mais harmoniosas.
NOTAS
(*) António Leão Correia e Silva –
Historiador, Sociólogo e escritor. Autor de vários livros e da História Geral
de Cabo Verde. É Reitor da Universidade de Cabo Verde.
(**) Daniel Pereira – Diplomata,
Historiador e Escritor. É Embaixador de Cabo Verde no Brasil
(***) Amílcar Lopes Cabral – Poeta,
Agrónomo e um dos maiores líderes Africanos. É o pai da Pátria Cabo-verdiana.
(Comunicação apresentada na Feira do Livro e oficina
cultural Cândido Portinari) no Brasil-Cidade Ribeirão Preto-Estado de São Paulo